segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Preguiça

Passo Um: auto-comiseração.
Quando morrer serei papa Cerelac para vermes e estrume para os poros da terra, sei-o bem, parece-me apetitoso. Mas não ser nada mais do que isto ainda me dói. Dois palmos abaixo do umbigo e dois dedos e meio escarafunchados no ego. Para mais tenho a certeza de ter algum velho conhecido metido e sabido nos cantos do limbo que me dirá vezes sem conta eu-bem-te-avisei. Avisei-te que deverias trabalhar mais, ser mais humilde, não esperares uma espécie de nobel em troca de uma espécie de nada.

Passo Dois.
Não sou a única a querer prémios por existir, mereço justiça. Sou medíocre muitas vezes, outras poucas tenho sorte. Algures no meio sei que está em falta qualquer coisa. E nem me importo a maior parte do tempo, porque existe sempre a vida a quem presentear as culpas. Por não passar de papa Cerelac. Pelo estrume que possa valer não dar grandes colheitas. Pela feiura das palavras que imponho às palavras que gostaria de dizer. Pelo cansaço de ter que morrer. Uma e outra vez até me decidir a fazer pela vida.


Três.
Algures sei que a culpa vem do corpo. Que não se decide a ser bom no que é realmente bom, desde pequenino. Que não cresce e arranja mil desculpas ou costas mais largas do que as dele, para os trabalhos e dias menos bons. Que finge que não ouve, que não sabe assinar, nem sabe onde isto tudo vai dar. O que vai ter que ouvir vezes sem conta se continuar inerte, amolecido, a fingir-se de morto- mesmo a saber que há quem se esqueça de respirar. O corpo que continua à espera que as portas se fechem, para culpar o vento, o trinque, a vida. E eu já disse, não me importo a maior parte do tempo, mas os meus dedos querem mesmo dançar, correr, esmurrar, andar, tocar mais do isto. Um passo, que seja.