quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Reparaste?

Tenho um pedaço cá fora, reparaste?
Tenho um bocado de rim vítima de caquexia dos queixumes da vida, à vistinha de quem vê. Vinte gramas de intestino desalinhado pendurado no bolso das calças. Uma nesga de laringe na ponta da língua, a morrer de esperança. Uma noz de cérebro desaguada na unha do pé. Uma réstia de bexiga pronta a rebentar pelos olhos. A poesia do apêndice nos cabelos.
Tenho na montra vários órgãos com falta de música e formigueiros dançantes. No pulso, tenho um relógio que me deixa sempre ficar mal, que não sabe pulsar como um pulso normal. Com uma tristeza de relógio, conformada, apática, velha. Algures entre o que fica e o que vai quando te lembras de mim, tenho-o histérico, prestes a queimar-me da maneira mais doce que imagines. Ai.

Tenho um pedaço cá fora que vive e morre, vive e morre todos os dias não sabes bem porquê. É impossível, saber  quando e onde o guardar. Não lhe ligues, meu bem, cedo se arranja caixote que empacote esta sujeira toda. Numa manhã limpa e ruça sem dores de cabeça ou medos de falhar.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Iguais

Quando digo que somos muitos iguais, há sempre alguém que exclama, reclama, se escama, faz birra no assento, embora de boca cosida. Quando há coisas tão simples como a vontade de dar vida, criar, fazer diferente e mudar o mundo inteiro com amor e esperança, há sempre alguém que nos diz 'tem cuidado', 'não vás por aí', qualquer coisa como olha -que- isso- dói -e -dá- trabalho-,- vê- lá- no -que- te -vais -meter. Mas é quando ouço o dito por não dito e o sentido por flácido e gordurento no colchão inutilizado, que me mete nojo num anseio de não ser igual, nunca mais dizer que há ponta de cabelo ou unha igual entre nós.

Siga.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

ἀμνησία

 - ainda sinto a tua falta, sabes? como quem sente saudades do que sentiu e de quem foi ao sentir...tu sabes. é que há tardes que doem, sabes? mais do que qualquer pieguice ou corpo possa doer. há, sobretudo, exactos momentos em que te apetece gritar 'eu, eu é que sei sofrer às escondidas!', sabes? Fracções de segundo em que devoras todas as faltas de presença que ainda não listaste no teu diário de pele. mas tu. tu és a tatuagem que sou, hoje em dia. ocupas-me toda e nem migalhas deixas, para dias de mais fome. tu e o meu ego ocupam-me toda e eu fico encolhida debaixo da mesa, à espera que ninguém me note, que ninguém me limpe os olhos, que toda eu escorra pelo chão e não passe de um problema resolvido por uma esfregona.

- o teu jogo é sujo, não sabes brincar definitivamente. onde estão as memórias que antes vivíamos, num consolo pegado de termos algo em conjunto? tratávamo-las como uma planta de namorados, como um cachorro de estimação que se alimentasse de biberão dos nossos risos, do nosso abraço, da dança que éramos nós, irrepetível. Como dizes que me tens, se o que te perturba é a falta de passado, foi  o acordar e os significados que lhe deste?

- Não preciso de memória. Enquanto for viva, saberei que fui feliz, que tive histórias e não as quis contar. Que as esqueci, por causa de uma mísera tatuagem invisível. E que me esqueço constantemente do mal que te quis, do bem que te quero e que não te quero mais ver.


- Amo-te antes de adormecer, sabes?

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

a coisa


Tenho em mim uma coisa sem nome, que não se identifica nem quer conversa comigo. Aparece quando me deito, por vezes quando estou acompanhada, tantas as vezes quando estou só. Não me fala mas grita, rebenta-me os tímpanos na ansiedade de resposta. Do outro lado, nada. Morro. É que ela está lá mesmo quando não está, a coisa que não fala. é tanta a certeza da sua vida que me troco por ela, passo-me por fantoche das suas manias, chantagens, ultimatos, chagas invisíveis, do seu amor pela tragédia. Deixo de falar, sou uma coisa sem nome nem conversas comigo. E há sempre um dia em que a pinga de água ensopa o balde e nos afundamos sem bóias nem chapéus-de-chuva que salvem. Me, a coisa.

sábado, 1 de outubro de 2011

que Queres de Mim

Quero roer, rasgar, desfazer tudo o que te é impuro. Amar-te em noites de verdade e vergonha. Ser o antídoto salvador para o que te obriga ser a gente que te insere no mundo-bicho da civilização. Ficar no canto mais escuro na festa que dás quando não te sentes observado. Entrar, ficar visível, prometer-te que não sou como tu. E depois?

- Continua. Dança comigo.

Não estás sozinho. Mas estás. Somos dois. Mas seremos sempre só o que permitimos que os outros nos vejam ser. Somos muitos. Continuamos a ser nós, mas muito poucas vezes. Estamos velhos, damos festas privadas cada vez com mais espaço e tempo entre elas. É preciso fugirmos para nós, sermos crianças selvagens sem medos ou linguagem que nos condenem. Aprendermos o que foi. Sermos o que é. E depois?

- Continua.
- Depois, havemos de morrer com qualquer coisa que nos caia em cima. Temos de dançar, enquanto há corpo e alma, mesmo no canto mais escuro da sala.
- Continua.

 
- (dança com os dedos indicadores apontados para o céu) Palminhas a nós.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Preguiça

Passo Um: auto-comiseração.
Quando morrer serei papa Cerelac para vermes e estrume para os poros da terra, sei-o bem, parece-me apetitoso. Mas não ser nada mais do que isto ainda me dói. Dois palmos abaixo do umbigo e dois dedos e meio escarafunchados no ego. Para mais tenho a certeza de ter algum velho conhecido metido e sabido nos cantos do limbo que me dirá vezes sem conta eu-bem-te-avisei. Avisei-te que deverias trabalhar mais, ser mais humilde, não esperares uma espécie de nobel em troca de uma espécie de nada.

Passo Dois.
Não sou a única a querer prémios por existir, mereço justiça. Sou medíocre muitas vezes, outras poucas tenho sorte. Algures no meio sei que está em falta qualquer coisa. E nem me importo a maior parte do tempo, porque existe sempre a vida a quem presentear as culpas. Por não passar de papa Cerelac. Pelo estrume que possa valer não dar grandes colheitas. Pela feiura das palavras que imponho às palavras que gostaria de dizer. Pelo cansaço de ter que morrer. Uma e outra vez até me decidir a fazer pela vida.


Três.
Algures sei que a culpa vem do corpo. Que não se decide a ser bom no que é realmente bom, desde pequenino. Que não cresce e arranja mil desculpas ou costas mais largas do que as dele, para os trabalhos e dias menos bons. Que finge que não ouve, que não sabe assinar, nem sabe onde isto tudo vai dar. O que vai ter que ouvir vezes sem conta se continuar inerte, amolecido, a fingir-se de morto- mesmo a saber que há quem se esqueça de respirar. O corpo que continua à espera que as portas se fechem, para culpar o vento, o trinque, a vida. E eu já disse, não me importo a maior parte do tempo, mas os meus dedos querem mesmo dançar, correr, esmurrar, andar, tocar mais do isto. Um passo, que seja.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Muito & pouco



O teu amor sabe-me a pouco. Tu sabes-me a muito, muito pouco. E todos os segundos em que na ilusão te tenho, sabem-me a tanto que sabem tanto a pouco. Em demasia.
A nossa vida sonhada, o nosso limbo que só nos enrosca mais nesta necessidade de provarmos,  mais, provar tudo, principalmente todos os pedaços que achamos um do outro e um no outro. Chega a ser óbvia esta gulodice apegada que não é mais do que insegurança entre o amanhã e o ontem. Nós sabemos, somos trapezistas e não temos grande trampolim de salvação. Será, talvez, por isso que o voar sabe tão bem, sabe a tanto, sabe a muito e a pouco.

sábado, 30 de julho de 2011

Voo


Enquanto vou e não vou, preciso de ti.
Não sei se te amo ainda, mas preciso de ti. És-me real. O meu passado e o que resta de mim, a parte valiosa, és tu. O único que não cresceu com manias de grandeza. O que sabe para que servem as andas. O que me ensina a andar como quem sonha e a desfazer-me das caixas cheias de queixas de velha ressabiada. Que até me dá carradas de razão, quanto só pouca é possível ter. Tu, o meu amuleto de vida sorridente. Um amigo. Talvez o amor - talvez pois, com incertezas justas e divinas - que tenho por mim, em ventos imprevisíveis.

Não te partas ou te percas. Eu não te vendo. (Mas ambos sabemos, o voo é individual.)

terça-feira, 12 de julho de 2011

Acordo Ortográfico


É um facto: comigo é frequente ficar tudo abananado, tudo mais ou menos em questão aberta mas de peito fechado. Mas hoje, hoje até as letras  me confundem. Toda. Preciso de gotas para a almofada, a ver se pôem alguma ordem no miolo que se enrosca nela. Hoje estou mesmo reduzida a um passo de fox trot. Ou, na melhor das hipóteses, a um novelo desmanchado no chão da sala à espera que um bicho me resolva o esquema.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Sambas

Primeiro,

As minhas pestanas teimam em colar-se no rés-do-chão dos meus olhos, a culpa não é minha de não ver o essencial. É que bater com a porta sabe bem e faz-nos parecer rebeldes, donos da razão sem razão alguma de ser. A vontade de aprender até parece fraqueza, quando é tão fácil dizer eu sei, eu faço, eu tudo julgo e não saio do lugar nem sei porquê. E nisto vão-se as bactérias boas da vida, as matérias que um dia quiseram ser apreendidas, o ritmo sem palco nos pés e nós todos apertados nos pés com unhas e palavras encravadas, coitadas, que dó.

Segundo,

Tenho um novo sol á minha frente. Ao que parece, os meus olhos começam a ser não de gente, mas de gente humana. Tenho tanto para dizer, sorrir, esbanjar por aí, nos ares, nas ruas - cantigas, palavreados e ditados que desditem a dor que eu sabia minha - tenho muito para aprender, mas tenho mais, tenho vontade. Não quero bater portas, quero-as escancaradas para que entre o bom e saia o mau para o que sou eu e ainda não sei. Não quero a razão, quero dançar e reaprender a ouvir o ritmo para onde a vida me leva.

Carreguem nos olhos de cima. Façam-nos rir, celebrem.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Alguma coisa de errado


Não há borrachas que apaguem gente. Existem camadas e camadas de tinta que insistimos em empurrar contra a dor própria da tela. Mas existe um fio de cabelo que fica à vista, mas existe uma pupila que nos pede mil vezes sentidas Lembra-me Lembra-me Lembra-me, Lembra-me senão Morro Dentro de Ti. Morrer dentro dos outros é uma tristeza inexplicável.
Mesmo quando a saudade se torna fraca e parece que seguimos em frente – o que é isto de seguir em frente?, em frente de quê e de quem? – ficam os pincéis para contar a história, as mãos, o sonho do que era para ser e a desilusão do que afinal foi e não foi,  em constante jogo de xadrez. Mesmo com os riscos e desculpas que pomos para nos justificarmos os riscos e decisões que tomámos, as pessoas e risos que perdemos, aquele bocado de nós que tanto amávamos e que já não somos, os fios de cabelo, as pupilas, os cheiros e tudo o mais para além do corpo - fica. Fica e muito. Mesmo quando não queremos ou não sabemos, a vida é uma réplica redonda das obras de arte do nosso passado. Das pessoas todas, das palavras mestres, dos silêncios cárceres.

Tens medo de pintar por cima. Sentes que há alguma coisa de errado nesse quarto, nessa boca, nesses olhos que são os teus dia sim, dia não. Nos tremores das mãos com falta de auto-estima para dizerem eu quero, eu sei, eu faço. Nas cabeleiras que coleccionas, de tanta gente que já passou e deixou lembrança. Sentes muito, pouco, já não sabes o que sentes. Pedes constantemente borrachas.

sábado, 9 de abril de 2011

Sonhos

Os caminhos que fazes ou escolhes são tudo o que tu queiras, mas sem inocência à vista ou na algibeira. São as palavras que não andam por não terem pés nem fé no que querem dizer. São o que resta na brecha que separa a parede e o silêncio. São, muitas vezes, por isso, tu no mais puro que te consegues sentir. Mas sem inocência.


O que encontras nos teus caminhos é mais do que o mundo a falar contigo. São sonhos do lado de cá, são histórias de quem não existe, na versão da lupa que te der mais jeito ao ego. Dicionários sem abecedários. Coisas difíceis de se entender mas que se entendem à primeira, se quiseres. Línguas enroladas, corpos sem equilíbrio. Muito espírito com costas largas.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Estupidez

Acho que não preciso de te dizer grande coisa para que tu saibas o que eu quero dizer. Levaste os risos, os copos de partir, os livros de rasgar, a tua roupa pela minha janela. Todas as certezas de ser completa não passaram das ilusões que são, mas também as levaste. Tinhas um argumento para provar, nunca o cheguei a entender- demasiado terror que me levasses também, sem o mecanismo de inverter a ordem natural dos lábios -  agradeço-te todos os dias.

Estúpida fui eu, nunca quem me viu chorar por me levarem os risos todos. Pelos arrepios com o que as tuas mãos me diziam no fundo da coluna. Pelos tremores de boca e de sexo quando me juravas que eu não tinha a noção do quanto me pertencias, do menino perdido que eras e no reflexo que eras de mim. Estúpida, eu. Pelo bater do coração na garganta quando, por momentos, tu querias, podias e mandavas. Pelo estúpido do fogo de artifício a mostrar alguma espécie de piedade pelo nosso momento fraco e piegas de amor. Pelas estrelas e pela nossa primeira discussão à séria. Por acreditar que eram mesmo lágrimas que corriam pelos teus olhos e que o teu talento não pendia para o teatro. Por relacionar as tuas bebedeiras com a tua sinceridade e saber que nos casávamos em Junho. Estúpida. Pela entrega quase total daquilo que chamas de corpo e que ia tão para além disso, pela força do teu braço tronco fogo queimei-me. Ninguém teve culpa, nem eu. Fui só estúpida, nada que não se cure.

As pessoas de todos os dias

Dou os bons dias, sorrio talvez demais, esforço-me até que pareça falsa aos meus olhos, desconfiados - sem, contudo, o ser. Não me aprovo nem só um bocadinho. Procuro um sinal de que sou boa gente e não sei como me explicar que são as cores dos meus medos que não me permitem ser mais. Eu sou, eu calo, eu penso. Não há lugares marcados, mas também não há lugares. As cores, os medos, eu sem boca que me faça entender.

Apareço dia sim, dia não, a relembrar-me do quanto preciso, urgentemente, de mudar. Do sentido que perdi, dos significados sábios de antes (que tolos) e das frases sem semântica ou pulsação correcta. As cores, o medo de perder a inocência que é ser original.

É preciso ter fé e fé é o que custa mais ter. No deus que há em nós,no pedaço bom que merecemos no mundo, na audácia que é parar de nos vermos fracos e sem sombra para descansar. E quando a coisa corre mal, fé no santo mais próximo e com as costas mais largas. Mandar as culpas para o ar como quem não se levanta para não cair. Sorrir muito e dar cor aos medos, implorar nos olhos para que gostem de nós.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Errare

- Estou forte e saudável, doutor.
- Bem vejo.
- Estou contente. Olhe para mim.
- Hm hm. Tens os dentes todos, bem vejo.
- E mudei, cresci. Não perdi nada que desse por perdido.
- A sério? Nada?
- Nada, sim. O apêndice, eu sei para onde foi. Os teus restos nas minhas entranhas, sei que se foram. Os amores das bodas de prata, os amigos de ouro,  as dores de ser sensível sei que se foram. Para onde foram. A sabedoria anterior, a febre interior, a musa que me fez quem era e nunca soube se era arte ou dor, foram. Essas, não sei para onde. Não deixaram bilhete, eu não deixei saudades. Foda-se.

Para onde me foi a alma? Diz-me, preciso tanto dela. Para poder chorar, para poder falar, para poder sentir que sou a que me sonho.Que sinto o que falo e que o que falo ainda tem valor. A minha língua já não lê nas linhas, desaprendeu a fazer-se adulta do que retinha nelas; os meus pés já não são crianças. E eu e as minhas birras Não-quero-isto-que-isto-faz-comichão: Tudo se fartou, foi com o apêndice e os teus restos.  A alma. A alma, a palavra sem desenho justo. Ao quanto me faz mais falta.

- Nada? E a alma?
- Não deixou bilhete, Eu não deixei saudades.
- Hm.
- Foda-se.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Não há que saber

Não me falem em lógica. A lógica é sobrevalorizada, desde que nós e a lógica somos lógica. Tem ares de superior e vem nunca à hora marcada, entrega-se a quem tenha dois dedos de boa retórica. É uma menina rica pobre de espírito, (pelos menos que admitisse que o corpo dela não existe quando ao pé de tudo o resto). Não há muito que saber, ela não entende - mesmo, porque ela inteligente e nada mais.

Tenho dúvidas, que existem viagens e coisas que tais que dão sentido ao sono da noite e aos sonhos da manhã limpa e já gasta. A dúvida de chance perdida ganha ou entravada  algures num purgatório de oportunidades, haverá um novo dia, uma nova cama, uma nova pele sem escamar ou mudar os lençóis. É que não sei grande coisa da vida, mas não me importo de perder a lógica. Não deixa saudades. É uma namorada que me tira a identidade, que não me deixa ir ao fundo de mim do dia com força que força, que só cospe berbigotos intelectuais e se alimenta da minha personalidade coisa ansiedade.

Não há muito que saber e ela não entende. E eu não sou  de contar, aprendi a não gostar assim assim, de coisas favas contadas. Sei ouvir e nem todos os dias. Mas o que fica fica e não tem lógica, tem mais que corpo. A lógica há-de vir, mas nunca à hora marcada.